







"Se há uma característica comum a parte da cinematografia do extremo oriente que me comove é o olhar sobre a fragilidade dos relacionamentos humanos. Penso que enquanto viramos suco e nos perdemos na tradução tentando ‘reinventar a roda’ nas leituras do contemporâneo-pós-alguma-coisa que nos engole, eles, anos luz à frente, já pagaram essa matéria. Ou seja: Nós ainda estamos confusos nessa adaptação a redes e fios que roubaram a inocência rupestre das comunidades não urbanizadas e conectaram uma ponta do mundo à outra, bagunçando identidades e relações humanas. Eles, já acordaram, com bafo e cabelo desalinhado, e elaboram uma ressaca com análise e autocrítica.
Bauman, no prefácio de seu Amor Líquido (Editora Jorge Zahar, 2004) diz que “em nosso mundo de furiosa ‘individualização’, os relacionamentos são benção ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há como determinar quando um se transforma no outro. Na maior parte do tempo, esses dois avatares coabitam – embora em diferentes níveis de consciência”.
Acho que Takeshi Kitano, ao adaptar e dirigir Dolls (2002) tinha em mente exatamente isso. Estar só, num mundo tão controverso, é o abandono, a maldição e o caos. Mas, por outro lado, nunca houve um tempo tão complicado para as almas gêmeas (aqui, peço licença poética) se materializarem ao longo de uma vida. Nosso DNA não permite mais a expectativa de complementaridade, pois tudo que é feito para mais de um se tornou escasso e somos, mais e mais, motivados a pensar ‘em nós em primeiro lugar’. Como ser dois, se já nos custa tanto estar no mundo sendo apenas um? E cumprir essas metas de superação pessoal, tão penosas, nessa acelerada competitividade.
O amor, neste filme, habita relações onde o trágico é cenário e destino para os casais, é uma benção ambígua. Pune e liberta. Afaga e culpa. Perdoa e martiriza. A inspiração de Kitano foram histórias clássicas do teatro de bonecos japonês.
Das três histórias que se intercalam, a imagem dos mendigos amarrados é a melhor metáfora dessa questão. Matsumoto deixa de lado o seu grande amor, Sawako, para realizar um casamento que representa um acordo de interesses familiares e ascensão social. No entanto, ao saber que sua amada se tornou incapacitada após uma tentativa de suicidio, arrepende-se e abandona todos os planos de grandeza, passando a viver em função dela, todo o tempo. O gesto altruísta – porém culpado – leva os dois a arrastadas caminhadas rumo a lugar nenhum, nas margens e no limbo da vida-feita-pra-fazer-sentido, apartados da realidade e da compreensão daqueles que os cercam. Nas outras duas histórias, há também o enunciado de que o amor só é possível na impossibilidade. Uma mulher espera quarenta anos por um homem, mas, quando este a reencontra, havia perdido sua alma. Um jovem torna-se cego por entender que este é o único caminho até a sua musa. Pois é, um tumultuado jogo de contradições que resultam num filme tão rico esteticamente quanto doloroso. Um poema de versos tristes e cores de primavera."
via 2046
dolls original soundtrack
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